Quarta-feira de cinzas
escolho tentar me redimir ao invés de ir dormir, me espanto com a rapidez da resposta, quem dera fosse sempre assim, a vigília prolongada não parece impedir trabalhos essencialmente mecânicos como recortar e colar, falando em resposta, já passou da hora de mandar um sinal, e a tanta gente, mas hoje o dia é dela, da nossa mariazinha, “ainda não foi dormir, filha?”, “preciso enviar este pacote e escrever pra Beatriz”, banco antes do correio, sem os dados não dá, ainda bem que minha mãe conhece a filha que tem, voltar ao banco e enfrentar quarenta e cinco minutos de fila, como existe gente cara-de-pau neste mundo, da próxima vez digo que estou grávida, grávida de dois meses e, se alguém chiar, ainda digo que preciso sacar a grana justamente pra fazer um aborto, outro banco e estou mesmo sem sorte, conferir saldo de volta no primeiro, esperar a chuva que surgiu do nada passar, então
que esperar, que nada, se eu tinha duas bolsas, uma preta e uma vermelha, e estou só com uma nas mãos, quer dizer que a outra tem que estar em algum dos lugares pelos quais passei, maldição, ainda bem que o outro banco é pertinho, mas vá dizer a alguém correndo debaixo de uma pancada forte de chuva que algum lugar é perto, umas duas quadras e uns dois minutos e parece que sobrevivi a uma tempestade, castigo pelos meus pecados ou oferta-relâmpago de redenção, que seja, é bom lavar a alma de vez em quando, não chego a tocar a porta quando ela se abre e ouço um “uma bolsinha vermelha, não é?”, o alívio escorre pelo meu corpo, “acabei de entregar para o guarda ali, mas você não vai mais encontrar os vinte mil dólares que tinha nela, não”, sorrio ao imaginar a frustração de quem procurasse dinheiro naquela nécessaire da Casa Hope, protetor solar fator 45 para o corpo, hidratante oil free com protetor solar fator 30 para o rosto, sabonete Clean & Clear, adstringente Clean & Clear, um creme anti-acne qualquer, uma água-de-colônia também qualquer, camisetinha preta, calcinha branca, tanta coisa que mais parece a bolsa da Mary Poppins, “boa chuva pra você”, “quem sai na chuva, é pra se molhar”
o caminho até a banca de jornal é pouco, mas os olhares curiosos são muitos, por que é que alguém tomaria aquela chuva toda se não durou mais do que três minutos, o que custava essa maluca esperar dentro ou debaixo de algum lugar, agora fica andando por aí toda encharcada e com essa regatinha branca ainda por cima, já disse o que me custava esperar a chuva passar e não acho que seja pouca coisa, além do que nem há grande coisa a se mostrar, longe de ser uma bem-dotada, devo parecer é um vira-lata molhado, molhado e cego, os óculos mais atrapalham do que ajudam numa situação como essa, “deixe eu ver se tenho trocado”, “não quis esperar a chuva passar?”, “emergência, esqueci minha bolsa no banco”, “ah, sim, não teve jeito, então”, entro no xerox com uma resposta na ponta da língua, a presença do proprietário deve ter calado as possíveis piadinhas, a demora me irrita porque posso adivinhar os olhos do jornaleiro saltarem da outra esquina até mim, o correio como meu porto-seguro, a funcionária deixa sua má-vontade se regalar com o meu estado deplorável, volto ao serviço da minha mãe pra entregar o comprovante do depósito e sou finalmente salva, só a blusa porque não vou sair por aí com roupas de ginástica e sandálias de borracha, já me basta o ridículo que passei até agora, e sacolas com iogurte e roupa molhada pra acompanhar as duas bolsas e completar o meu figurino bizarro, socorro
ufa, chegar na vó e comer, porque até as cinco e pouco em jejum é demais, e passar a calça jeans pra ver se seca um pouco, porque me apresentar molhada da cintura aos pés é demais, e tomar banho, porque ficar tomando friagem mesmo num dia de sol como esse é demais, e tirar um cochilo, porque até as seis em vigília é demais, acordar pra ouvir que posso ficar louca se não tomar cuidado, “foi assim que aconteceu com a Clarice, coitada, ela gostava tanto de fazer uma coisa só que acabou perdendo o juízo e agora anda por aí toda maltrapilha, falando sozinha agarrada numa sacola”, “ai, tia, olha o absurdo da comparação que você está fazendo”, é melhor carregar na indignação, indignação sincera, é verdade, ainda que eu saiba que faz sentido, noivo nenhum no mundo me seria tão constante quanto a loucura, esse cavalheiro que há anos me espera paciente e tentadoramente, um sim e seríamos felizes para sempre, porque ser louco e infeliz é demais, mas não gostei nada disso, lembrar que já fui chamada de louca por elas uma década atrás, pelo menos os loucos inspiram medo e o medo inspira respeito, voltando ao lado de cá, uma hora falando de cultura geográfica inútil e dando alguns foras, trocando diálogos e pólos, preciso conferir onde moram os pingüins e os ursos polares
dream about the sun, you queen of rain (sonhe com o sol, sua rainha da chuva)
que esperar, que nada, se eu tinha duas bolsas, uma preta e uma vermelha, e estou só com uma nas mãos, quer dizer que a outra tem que estar em algum dos lugares pelos quais passei, maldição, ainda bem que o outro banco é pertinho, mas vá dizer a alguém correndo debaixo de uma pancada forte de chuva que algum lugar é perto, umas duas quadras e uns dois minutos e parece que sobrevivi a uma tempestade, castigo pelos meus pecados ou oferta-relâmpago de redenção, que seja, é bom lavar a alma de vez em quando, não chego a tocar a porta quando ela se abre e ouço um “uma bolsinha vermelha, não é?”, o alívio escorre pelo meu corpo, “acabei de entregar para o guarda ali, mas você não vai mais encontrar os vinte mil dólares que tinha nela, não”, sorrio ao imaginar a frustração de quem procurasse dinheiro naquela nécessaire da Casa Hope, protetor solar fator 45 para o corpo, hidratante oil free com protetor solar fator 30 para o rosto, sabonete Clean & Clear, adstringente Clean & Clear, um creme anti-acne qualquer, uma água-de-colônia também qualquer, camisetinha preta, calcinha branca, tanta coisa que mais parece a bolsa da Mary Poppins, “boa chuva pra você”, “quem sai na chuva, é pra se molhar”
o caminho até a banca de jornal é pouco, mas os olhares curiosos são muitos, por que é que alguém tomaria aquela chuva toda se não durou mais do que três minutos, o que custava essa maluca esperar dentro ou debaixo de algum lugar, agora fica andando por aí toda encharcada e com essa regatinha branca ainda por cima, já disse o que me custava esperar a chuva passar e não acho que seja pouca coisa, além do que nem há grande coisa a se mostrar, longe de ser uma bem-dotada, devo parecer é um vira-lata molhado, molhado e cego, os óculos mais atrapalham do que ajudam numa situação como essa, “deixe eu ver se tenho trocado”, “não quis esperar a chuva passar?”, “emergência, esqueci minha bolsa no banco”, “ah, sim, não teve jeito, então”, entro no xerox com uma resposta na ponta da língua, a presença do proprietário deve ter calado as possíveis piadinhas, a demora me irrita porque posso adivinhar os olhos do jornaleiro saltarem da outra esquina até mim, o correio como meu porto-seguro, a funcionária deixa sua má-vontade se regalar com o meu estado deplorável, volto ao serviço da minha mãe pra entregar o comprovante do depósito e sou finalmente salva, só a blusa porque não vou sair por aí com roupas de ginástica e sandálias de borracha, já me basta o ridículo que passei até agora, e sacolas com iogurte e roupa molhada pra acompanhar as duas bolsas e completar o meu figurino bizarro, socorro
ufa, chegar na vó e comer, porque até as cinco e pouco em jejum é demais, e passar a calça jeans pra ver se seca um pouco, porque me apresentar molhada da cintura aos pés é demais, e tomar banho, porque ficar tomando friagem mesmo num dia de sol como esse é demais, e tirar um cochilo, porque até as seis em vigília é demais, acordar pra ouvir que posso ficar louca se não tomar cuidado, “foi assim que aconteceu com a Clarice, coitada, ela gostava tanto de fazer uma coisa só que acabou perdendo o juízo e agora anda por aí toda maltrapilha, falando sozinha agarrada numa sacola”, “ai, tia, olha o absurdo da comparação que você está fazendo”, é melhor carregar na indignação, indignação sincera, é verdade, ainda que eu saiba que faz sentido, noivo nenhum no mundo me seria tão constante quanto a loucura, esse cavalheiro que há anos me espera paciente e tentadoramente, um sim e seríamos felizes para sempre, porque ser louco e infeliz é demais, mas não gostei nada disso, lembrar que já fui chamada de louca por elas uma década atrás, pelo menos os loucos inspiram medo e o medo inspira respeito, voltando ao lado de cá, uma hora falando de cultura geográfica inútil e dando alguns foras, trocando diálogos e pólos, preciso conferir onde moram os pingüins e os ursos polares
dream about the sun, you queen of rain (sonhe com o sol, sua rainha da chuva)
(créditos: Roxette)
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