quinta-feira, 23 de fevereiro de 2006

O sol sobre Sofia

não sei pra que me arrumar com tanto esmero, óleo de banho, lentes de contato, lápis e rímel, vinho na saia cigana, preto na blusinha, cabelos propositalmente despenteados and I feel good in my own sandals, deve ser pra compensar o desastre de ontem, mas, gata encharcada, uso aquela sombrinha como disfarce, chamo a Clarice pra me acompanhar, companhia agradabilíssima na certa, apesar da melancolia na voz, dividimos um banco no ônibus, não me importo de levá-la no colo, quem adivinharia a leveza de tanto peso, mais uma vez tropeço na má-educação alheia, qué me importa si toma la España y toda la Hispanoamérica, ich stehe in Deutschland und kann nach der Schweiz, nach Liechtenstein oder nach Österreich gehen, felizmente bem longe de você, que já passou por essa região quando eu ainda estava por lá, sorte que nunca tivemos que tolerar a presença uma da outra por muito tempo, não mais do que algumas baldeações no metrô, de você eu faria questão de me sentar bem longe, duvido que o seu peso não seja de esmagar, mas já sei por que as mordidas da Clarice não me dóem, apesar de doerem tanto, é aquele jeito só dela de assoprar, um sopro de verdade e vida no meu ouvido e me arrepio toda, embora não escute muito bem, e é por isso que não posso me atrasar, audiometria e mais uns exames de nome estranho às três e meia, até parece que só marquei horário com pessoas desagradáveis hoje, sorte que o espanhol foi excepcionalmente produtivo, me llamo Matilde Fernández Aragón, soy espía y vivo en La Habana, desisti de ser dançarina de tango já há quase dois anos e também Buenos Aires nem estava na lista, ser guia turística em Santiago de Compostela deve ser divertido também, e que coincidência sermos quase vizinhos e podermos ter sido vizinhos de fato um ano atrás, sério, a gente ou não conseguia dormir ou acordava no meio da madrugada, tanto motel por aí e essa mulher sem noção, a gente ri, mas é constrangedor, tomara que a Cris encontre alguma utilidade pra tanta tralha, abraço apertado de saudades

Mas ainda não divisara o fim sombreado do parque, e meus passos foram se tornando mais vagarosos, excessivamente cansados. Eu não podia mais. Talvez por cansaço, mas eu sucumbia. Eram passos cada vez mais lentos e a folhagem das árvores se balançava lenta. Eram passos um pouco deslumbrados. Em hesitação fui parando, as árvores rodavam altas. É que uma doçura toda estranha fatigava meu coração. Intimidada, eu hesitava. Estava sozinha na relva, mal em pé, sem nenhum apoio, a mão no peito cansado como a de uma virgem anunciada. E de cansaço abaixando àquela suavidade primeira uma cabeça finalmente humilde que de muito longe talvez lembrasse a de uma mulher. A copa das árvores se balançava para a frente, para trás. “Você é uma menina muito engraçada, você é uma doidinha”, dissera ele. Era como um amor.

Não, eu não era engraçada. Sem nem ao menos saber, eu era muito séria. Não, eu não era doidinha, a realidade era o meu destino, e era o que em mim doía nos outros. E, por Deus, eu não era um tesouro. Mas se eu antes já havia descoberto em mim todo o ávido veneno com que se nasce e com que se rói a vida – só naquele instante de mel e flores descobria de que modo eu curava: quem me amasse, assim eu teria curado quem sofresse de mim. Eu era a escura ignorância com suas fomes e risos, com as pequenas mortes alimentando a minha vida inevitável – que podia eu fazer? eu já sabia que eu era inevitável. Mas se eu não prestava, eu fora tudo o que aquele homem tivera naquele momento. Pelo menos uma vez ele teria que amar, e sem ser a ninguém – através de alguém. E só eu estivera ali. Se bem que esta fosse a sua única vantagem: tendo apenas a mim, e obrigado a iniciar-se amando o ruim, ele começara pelo que poucos chegavam a alcançar. Seria fácil demais querer o limpo; inalcançável pelo amor era o feio, amar o impuro era a nossa mais profunda nostalgia. Através de mim, a difícil de se amar, ele recebera, com grande caridade por si mesmo, aquilo de que somos feitos. Entendia eu tudo isso? Não. E não sei o que na hora entendi. Mas assim como por um instante no professor eu vira com aterrorizado fascínio o mundo – e mesmo agora ainda não sei o que vi, só que para sempre e em um segundo eu vi – assim eu nos entendi, e nunca saberei o que entendi. Nunca saberei o que eu entendo. O que quer que eu tenha entendido no parque foi, com um choque de doçura, entendido pela minha ignorância. Ignorância que ali em pé – numa solidão sem dor, não menor que a das árvores – eu recuperava inteira, a ignorância e a sua verdade incompreensível. Ali estava eu, a menina esperta demais, e eis que tudo o que em mim não prestava servia a Deus e aos homens. Tudo o que em mim não prestava era o meu tesouro.

Como uma virgem anunciada, sim. Por ele me ter permitido que eu o fizesse enfim sorrir, por isso ele me anunciara. Ele acabara de me transformar em mais do que o rei da Criação: fizera de mim a mulher do rei da Criação. Pois logo a mim, tão cheia de garras e sonhos, coubera arrancar de seu coração a flecha farpada. De chofre explicava-se para que eu nascera com mão dura, e para que eu nascera sem nojo da dor. Para que te servem essas unhas longas? Para te arranhar de morte e para arrancar os teus espinhos mortais, responde o lobo do homem. Para que te serve essa cruel boca de fome? Para te morder e para soprar a fim de que eu não te doa demais, meu amor, já que tenho que te doer, eu sou o lobo inevitável pois a vida me foi dada. Para que te servem essas mãos que ardem e prendem? Para ficarmos de mãos dadas, pois preciso tanto, tanto, tanto – uivaram os lobos, e olharam intimidados as próprias garras antes de se aconchegarem um no outro para amar e dormir.

... E foi assim que no grande parque do colégio lentamente comecei a aprender a ser amada, suportando o sacrifício de não merecer, apenas para suavizar a dor de quem não ama. Não, esse foi somente um dos motivos. É que os outros fazem outras histórias. Em algumas foi de meu coração que outras garras cheias de duro amor arrancaram a flecha farpada, e sem nojo de meu grito.


[traduções: 01. e me sinto bem nas minhas próprias sandálias – trocadilho, difícil de traduzir, com a expressão “in one’s own shoes”, nos seus próprios sapatos, ao pé da letra, na sua própria pele, como dizemos de fato; 02. que me importa se você toma a Espanha e toda a América Hispânica, eu fico na Alemanha e posso ir para a Suíça, para Liechtenstein ou para a Áustria; 03. me chamo Matilde Fernández Aragón, sou espiã e moro em Havana – óbvio, um dos motivos pelos quais não gosto de traduzir espanhol aqui, que coisa]
(créditos do texto realmente literário: Clarice Lispector, A Inevitável)