domingo, 26 de fevereiro de 2006

II

(na cama)

– Pensei que cê não tava em casa.
– Tava com preguiça de atender.
– Achei que era você ligando pra falar alguma coisa.

(na mesa)

– Divide esse mamão comigo.
– Não gosto de mamão, caramba.
– Como você é chata.

(na cama)

– Tem um CD que você vai gostar.
– Mas quero ouvir este.
– Caramba, você gostou mesmo, hein?

(na mesa)

– A minha ficou meio seca.
– Pega um pedaço da minha.
– É, a sua tá melhor.

(entre os quartos)

– Vontade de saber dançar.
– Por que cê não volta a fazer aula?
– Com quem?

(entre o banheiro e a sala)

– Queria tanto que você fosse.
– Tenho que estudar.
– Chata.

25-12-1929 Depois que os últimos pingos da chuva começaram a tardar na queda dos telhados, e pelo centro pedrado da rua o azul do céu começou a espelhar-se lentamente, o som dos veículos tomou outro canto, mais alto e alegre, e ouviu-se o abrir de janelas contra o desesquecimento do sol. Então pela rua estreita, do fundo da esquina próxima, rompeu o convite alto do primeiro cauteleiro, e os pregos pregados nos caixotes da loja fronteira reverberaram pelo espaço claro.

Era um feriado incerto, legal e que se não mantinha. Havia sossego e trabalho conjuntos, e eu não tinha que fazer. Tinha-me levantado cedo e tardava em preparar-me para existir. Passeava de um lado ao outro do quarto e sonhava alto coisas sem nexo nem possibilidade – gestos que me esquecera de fazer, ambições impossíveis realizadas sem rumo, conversas firmes e contínuas que, se fossem, teriam sido. E neste devaneio sem grandeza nem calma, neste atardar sem esperança nem fim, gastavam meus passos a manhã livre, e as minhas palavras altas, ditas baixo, soavam múltiplas no claustro do meu simples isolamento.

A minha figura humana, se a considerava com uma atenção externa, era do ridículo que tudo quanto é humano assume sempre que é íntimo. Vestira, sobre os trajes simples do sono abandonado, um sobretudo velho, que me serve para estas vigílias matutinas. Os meus chinelos velhos estavam rotos, principalmente o do pé esquerdo. E, com as mãos nos bolsos do casaco póstumo, eu fazia a avenida do meu quarto curto em passos largos e decididos, cumprindo com o devaneio inútil um sonho igual aos de toda a gente.

Ainda, pela frescura aberta da minha janela única, se ouviam cair dos telhados os pingos grossos da acumulação da chuva ida. Ainda vagos, havia frescores de haver chovido. O céu, porém, era de um azul conquistador, e as nuvens que restavam da chuva derrotada ou cansada, cediam, retirando para sobre os lados do Castelo, os caminhos legítimos do céu todo.

Era a ocasião de estar alegre. Mas pesava-me qualquer coisa, uma ânsia desconhecida, um desejo sem definição, nem até reles. Tardava-me, talvez, a sensação de estar vivo. E, quando me debrucei da janela altíssima, sobre a rua para onde olhei sem vê-la, senti-me de repente um daqueles trapos húmidos de limpar coisas sujas, que se levam para a janela para secar, mas se esquecem, enrodilhados, no parapeito que mancham lentamente.


(na mesa)

– A gente dançou tanto.
– É bom.
– Cê devia ter ido.

(ainda na mesa)

– Pode desligar?
– Pode não, deve.
– Não vai dormir muito tarde.

concentração perdida, deixo o sujeito pra amanhã, preciso de um banho urgente, isso são horas de a descarga disparar, mãe também é pra essas coisas, só falta aquela barata vir me atacar aqui no meio da sala

(créditos: Bernardo Soares ou Fernando Pessoa, a escolher – sim português de Portugal, por isso o “húmidos”)